Não poderia recordar minha infância em Belmonte sem falar sobre a Sociedade Filarmônica Lyra Popular. Era uma época que qualquer cidade de interior que se prezasse tinha a sua banda. Nós em Belmonte tínhamos duas: A Lyra e a Quinze de Setembro. A rivalidade entre as duas era tão acirrada que famílias de um lado não mantinham relações com a do outro. A cidade era dividida em adeptos de uma ou de outra, não havia neutralidade.
Por volta da metade da década de 40, a Quinze estava numa tremenda decadência, sua sede, na praça de São João, desmoronando, poucos instrumentos e logicamente um número muito reduzido de músicos. Enquanto isto a Lyra, talvez pôr falta de competidor vinha como que se arrastando. Reuniam-se esporadicamente para ensaios, alguns dos músicos já sem fardamento quando ela saia às ruas em datas festivas, muitos instrumentos nas prateleiras pôr falta de músicos e a rivalidade amortecida. O que mais a movimentava eram os bailes de carnaval na sua sede.
Eis que, após uma grande enchente do rio Jequitinhonha, enchente essa que levou boa parte da cidade, incluindo um cemitério, desembarca na cidade um engenheiro, Dr. Lustoza como responsável pelas obras a serem executadas para contenção das enchentes. Não sei o que levou o Dr. Lustoza a tomar-se de amores pela Quinze. O certo é que o homem começou a agitar. Iniciou a construção de uma nova sede a qual apresentava uma grande novidade: uma pista de dança ao ar livre.
Adquiriu novos instrumentos, iniciou a formação de novos músicos, enfim botou fogo na cidade. O incentivo que faltava para a Lyra havia chegado. Nesta época tio Dódo era o presidente da Lyra, cuja sede ficava quase em frente a nossa casa. A Lyra estava sem maestro, pois o antigo, prof. Aquino, havia se bandeado para o outro lado. Foram buscar um em Salvador, e de lá trouxeram o prof. Ricardo, sargento reformado da Policia Militar, que desembarcou com toda fama, e de imediato deu inicio ao seu trabalho.
Os ensaios passaram a ser muito concorridos em termos de assistência, eu não perdia nenhum. O Prof. Ricardo era muito exigente, fazia repetir quantas vezes fossem necessárias o trecho de uma partitura até que saísse ao seu gosto.
Se um determinado músico não executava a sua parte como ele desejava, ia até lá, tomava o seu lugar e tocava mostrando como tinha que ser. De imediato passou a ser respeitado e admirado. Nas noites que não havia ensaios era dedicado a formação de novos músicos, a rapaziada entusiasmada aprendendo música, havia até moças.
Eu nada perdia, acompanhava tudo, os alunos dando suas lições de teoria ou solfejo, os mais adiantados já tocando instrumentos, normalmente começavam com trompa, e de tanto ver e ouvir, já tinha algum domínio nos binários, ternários e quaternários, nos sustenidos e bemóis, o solfejo não me era de todo estranho. E a guerra tomou conta da cidade.
No primeiro dia que a Quinze saiu às ruas, lançou uma novidade. Na frente da banda ia o presidente e sua família, a família do maestro e as figuras mais representativas da daquela sociedade. O outro lado não ficou atrás, e quando saía lá estava à frente da banda, tio Dodó e o restante da diretoria, acompanhada de senhores e senhoritas e eu também, a desfilar ao ritmo dos dobrados.
Aproximava-se o mês de julho, e com ele a festa da padroeira, Nossa Senhora do Carmo. Os preparativos em ambos os lados eram incessantes. A Lyra mandou confeccionar em Salvador dois uniformes, um azul marinho e outro branco, os quais combinados formavam quatro uniformes. Um luxo, dólmã com botões dourados, calça com lista lateral, quepe azul marinho ou branco, sapatos pretos e luvas brancas.
A Quinze contratou um grupo de alfaiates, comprovadamente seus adeptos, e em sigilo absoluto, trabalhavam na casa do Dr. Lustoza para a confecção dos seus uniformes, sem que ninguém de fora soubesse as suas cores, segredo que foi guardado a sete chaves para só vir a publico no dia 16 de julho. E o segredo foi mantido.
À medida que a data se aproximava os ensaios não só passaram a ser diários, como foram se estendendo no horário, sendo que nas ultimas semanas iam até altas horas. Era fornecido um lanche aos músicos, saindo lá de casa um caldeirão com mingau de tapioca ou de milho para dar forças aos interpretes de Cavalaria Rusticana, Cavalaria Ligeira, Aida, Viúva Alegre e outras tantas obras célebres da musica universal. O professor Ricardo, inteiramente integrado no clima, passava o dia preparando partituras, intensificou a preparação dos novos músicos, estreou uma moça, Georgete (filha de Leonel) tocando clarinete, e um garoto tocando flautim.
Na loja de tio Dodó, não havia outro assunto. Nas rodas da tarde era o assunto dominante. Foi esquecido o preço do cacau, a política ou qualquer outra coisa que não fosse referente a Lyra. O professor Ricardo era exaltado, endeusado, seu conhecimento e capacidade inquestionável. O ensaio da noite anterior era comentado nos mínimos detalhes. Essa roda era como que a amostra do que se passava no restante da cidade. na ansiosa espera pelo grande dia, os ânimos também foram exaltando, as discussões cada vez mais acaloradas, levando os mais sensatos, poucos é verdade, a terem pôr conseqüências mais sérias.
A comissão organizadora da festa providenciou a construção de dois palanques, um em cada lado da praça para os litigantes, ou melhor, para as bandas. A Quinze recusou o palanque oferecido, iria construir o seu próprio. E o fez em segredo, somente sendo desvendado no dia. Era uma beleza!, em estilo chinês ou japonês, não sei bem, pintado de verde claro, arredondado, um luxo! O da Lyra, bem tosco, sem pintura, acho até que coberto com folhas de coqueiro, foi logo apelidado de farinheira.
Logo após o término da celebração da novena, deu-se inicio ao embate. A Lyra atacou com uma das peças arduamente ensaiada. Mal foi dado o ultimo acorde, a Quinze irrompeu como uma das suas, e daí em diante não parou mais, as pessoas não arredavam pé, após a apresentação de cada lado, palmas estrondosas, vivas, foguetes. Do outro lado, vaias e assobios. Se o povo não arredava o pé da praça, os músicos não desciam do palanque nem para suas necessidades.
À medida que as horas foram passando, começou do lado da Lyra a preocupação com alimentação dos músicos, pois na realidade ela não foi preparada para aquele tipo de debate, na verdade nem se previu o que não ocorreu com a Quinze, que trouxe antecipadamente a alimentação. Aí foi aquela correria para solucionar o problema.
Não foi preestabelecida nenhuma norma, mais ficou logo implícito não poder haver repetição de música, pois a disputa era pela qualidade e muito mais pelo tamanho do repertorio. (Comentava-se depois que a Quinze dividiu cada peça musical em mais de uma.)
Lá para as tantas, fui levado para dormir, contra minha vontade, na casa de vovó Alice. Quando acordei no dia seguinte, soube que continuava a contenda, fui para lá e cheguei ainda em tempo de ver o desfecho. Ninguém arredava o pé. Nenhum queria ser o primeiro a descer do palanque. O impasse foi resolvido com a interferência do Bispo de Ilhéus que estava presente para a festa. Após muitas confabulações, chegou-se até a pensar em solicitar a interferência da ONU, brincadeira, conseguiu-se chegar a um acordo; os dois maestros desceriam ao mesmo tempo acompanhados cada um de um negociador e os músicos sucessivamente isso é claro sob aplausos, vivas e vais de ambos os lados. Imagina só os comentários nos dias e semanas que se sucederam, cada habitante era um expert em música erudita.
Desse dia em diante a cidade mudou, as festas de Natal e Ano Novo até então comemoradas somente na Praça 13 de Maio, organizada pela Lyra/América, passou a contar com mais uma festa, na Praça da Bandeira, esta da Quinze/Belmonte. O carnaval ficou mais animado, agora com baile também na Quinze, tanto no salão como na pista descoberta, recém inaugurada.
Com a partida de Dr. Lustosa de Belmonte, a Quinze ainda resistiu ativa mais algum tempo, mas aos poucos foi se acabando. A Lyra permaneceu pôr muitos anos em atividade, tendo na sua regência o professor Ricardo Gomes Silva, que veio a constituir família em Belmonte, casando-se com minha tia Haydil (tia Didí). Tive ainda a felicidade de ver a Lyra desfilando na Rua Chile em Salvador, convidada pelo governo estadual para uma festividade, que não recordo qual foi (Essa viagem foi quando a Lyra foi a Salvador receber o premio de Campeã baiana, do concurso Salve a Retreta), com muito garbo. Hoje sei que ainda existe, sem o brilho de outrora, mas honrando o seu passado.
Narrando esses fatos, tento imaginar o que veria a pensar quem pôr ventura venha a ler estes escritos, não tendo vivido essa época. Incredulidade? Para entender, há de se colocar no tempo, e no lugar. Nos dias de hoje, com Atenas parabólica, TV, novelas, internet, DVD, estradas, carros, como imaginar o cotidiano na vida daquelas pessoas, onde eletricidade somente em dias especiais, assim mesmo restrito e duas ou três ruas e somente nas ruas, pois o velho gerador à Diesel não suportaria uma carga maior, além do custo do óleo.
Sem se situar numa pequena cidade, praticamente isolada do resto do mundo, sem as comodidades e distrações atuais, dificilmente vai aceitar esses relatos pela sua ótica real. Confesso que ao dar inicio a este relato, fi-lo de forma até jocosa, pois tinha na mente como um simples fato pitoresco. À medida que fui mergulhando no passado, senti a necessidade de mudar o tom de minha narrativa, pois não poderia desrespeitar aquelas pessoas que protagonizaram esses episódios. Todos eles, de ambos os lados, merecem o nosso respeito e preito de gratidão, pois impulsionado pôr amor a uma causa, sem medir esforços ou sacrifícios, com o único objetivo de realizar algo em pró de uma paixão que brotava dos seus corações, levaram alegrias e felicidades aquela comunidade, onde mais do que assistentes, todos fomos protagonistas.
Acredito que esses fatos hoje estão na lembrança de poucas pessoas, e com as imensas transformações havidas nos hábitos e costumes, mesmo para essas pessoas, que vivenciaram ou mesmo os protagonizaram, veriam o Dr. Lustoza de maneira diversa da época, em que com aos ânimos exaltados, e as paixões exacerbadas, se era admirado pôr uma parcela, pela outra era odiado. Ou estaria eu errado assim pensando, quando a distância física, mais do que a do tempo, nos dá uma dimensão diferente da realidade?
Todos os incidentes aqui relatados são uma visão dentro das minhas recordações, sem nenhuma preocupação com fatos históricos. Considero-me um privilegiado por ter vivido aqueles dias. Poderá haver discordância até mesmo pôr ser a visão de uma criança de 11 anos na época. Ao relatar, procurei isentar-me de qualquer paixão que por ventura ainda restasse nos meus sentimentos. Este capítulo sobra a Lyra, foi extraído do registro de minhas reminiscências em que relato minha feliz infância em Belmonte, para ofertar ao Professor Adilson, que por varias décadas vem regendo a nossa querida Lyra, e formando novas gerações de músicos, mantendo acesa esta chama que orgulha a cultura e as tradições belmontenses.
José Carlos Lemos Silva, 2000
Transcrito por: Allan Gabriel