Estevam Pedreira de Moura, que se tornou mais conhecido como Estevam Moura, representou, ao seu tempo, uma importante referência na música de bandas filarmônicas na Bahia. Isto o tornou, posteriormente, também bastante conhecido nacionalmente como assim atesta a presença de suas composições ainda hoje interpretadas em todos os lugares do Brasil onde ainda este tipo de grupo musical sobrevive, inclusive entre as bandas militares.

Indiscutível é também o respeito e os rasgados elogios que músicos e regentes destas formações musicais fazem da qualidade e sofisticação do seu trabalho. Vale lembrar que em 1978, por ocasião de um concurso nacional de bandas filarmônicas promovido pela Rede Globo de Televisão, transmitido em rede para todo o Brasil, com a participação de grupos musicais de várias regiões do país, a Bahia se fez presente com destaque através de brilhantes apresentações. Entre elas esteve presente a Sociedade Filarmônica 25 de Março, de Feira de Santana, indiscutivelmente a melhor do estado naquela época, interpretando composições de Estevam Moura, que veio a obter o segundo lugar na classificação final.

Esta posição não agradou, assim como gerou protestos de muitos críticos e outros especialistas na área, que consideraram as apresentações desta banda, assim como o repertório escolhido, a mais capacitada para angariar o primeiro lugar. A mesa comentadora e julgadora foi composta de renomados e respeitados maestros brasileiros, como Edino Krieger, Marlos Nobre, Isaac Karabithevsky e Julio Medaglia. Ao final, num emocionado discurso, o maestro Marlos Nobre comentou e elogiou as composições de Estevam, assim como lamentou a sua morte precoce e a carência de um melhor conhecimento e valorização do seu trabalho.

Na ocasião foi lançado um LP com as bandas finalistas. De Estevam Moura, com a filarmônica 25 de Março, foi gravado o dobrado Allah, um dos mais belos e bem elaborados do compositor. Esta mesma banda já se apresentou no Rio de Janeiro, nos anos quarenta, inclusive na Rádio Nacional e provavelmente na Rádio Ministério da Educação, regida por Estevam e interpretando algumas de suas composições. Comenta-se inclusive, por aqueles que vivenciaram aquele tempo, que Estevam foi convidado a se fixar naquela cidade onde ele teria melhores oportunidades de fazer carreira, inclusive na música popular, o que ele não aceitou, não se sabe exatamente o porquê.

É bom lembrar que Estevam Moura não compôs apenas dobrado, existindo no seu acervo também música sacra, inclusive com muitas ave-marias, te deums, etc., assim como marchas carnavalescas, sambas, foxes e fantasias, evidenciando assim o seu estilo eclético. Entretanto foi nas marchas e dobrados que ele mais se destacou e por onde é mais conhecido.

Estevam Moura nasceu no dia 3 de agosto de 1907 no arraial de Santo Estevão do Jacuipe, hoje o próspero município de Santo Estevão. Era o mais velho dos cinco filhos do comerciante João Pedreira Moura e Maria Minervina Carvalho Moura, mais conhecida como Dona Vida, que exercia o ofício de costureira com o qual sustentou e educou estes filhos, visto que o seu marido faleceu precocemente.

Segundo testemunho dos seus irmãos ainda vivos, Estevam desde criança já demonstrava forte inclinação para a música. Sua atividade lúdica mais comum era tentar (e conseguir) tocar flautas, fossem estas rudimentares de bambu, taquara ou até mesmo de galhos de mamoeiro, por ele mesmo fabricadas, inclusive as conhecidas e até hoje vendidas nas feira-livres das cidades do sertão nordestino,ocarinas, feitas de cerâmica de barro, de provável origem indígena com influência portuguesa. Experimentalismo musical nato, que lhe valeu no futuro, a sua forte característica autodidata. Os zabumbeiros, como eram conhecidas as bandas de pífanos e os barbeiros, bandinhas sem muita organização harmônica, quando desfilavam pelas ruas da vila, contavam sempre com a sua presença, seguindo e acompanhando o ritmo. Aos sete anos ingressou na escola pública local onde se destacou pela sua inteligência e perspicácia, além de uma notável vocação para a carreira musical, sensibilizando a sua professora, D. Francisca Simões, que lhe ensinou as primeiras notas musicais, obteve da sua mãe o consentimento para que este fosse incluído na Filarmônica 26 de Dezembro que estava em formação e da qual ele veio futuramente a ser o regente. Nesta ocasião ele compôs a sua primeira obra: Dobrado Alicio Teixeira. Sabe-se que, na realidade, Estevam aprendeu música mais como autodidata do que através de lições regulares de teoria musical.

Aos 18 anos Estevam deixava a sua terra natal transferindo-se para a florescente vila de Bonfim de Feira, convidado pelo Sr. Godofredo Leite, importante pecuarista da região, e sob o apoio do Vigário Lacerda, pároco e uma espécie de mecenas de atividades culturais e recreativas desta vila, para reger a recém-formada Filarmônica Minerva. Em Bonfim, Estevam viveu durante sete anos entremeados com bons e maus momentos, tentando heroicamente sobreviver da música. Ali fez várias composições, dentre elas o dobrado Verde e Branco, numa fase de grande inspiração e de decepções, pois foi obrigado a vender várias composições a fim de sobreviver.

Foi também em Bonfim que ele conheceu a bela e angelical Regina Bastos de Carvalho, filha de tradicional família local, por quem se apaixonou. Regina se entregou a este amor, enfrentando os seus pais e irmãos que radicalmente se opunham a este romance. Não admitiam que ela fosse namorar um músico pobre e mulato. As coisas chegaram a tal nível, e diante da insistência dos dois em manterem este romance, que foi necessário que o seu irmão mais velho e quem praticamente ditava as regras na família, providenciasse para ela um exílio temporário numa fazenda de cacau no sul da Bahia, pertencente à família de sua esposa, e quase que uma não-oficial prisão domiciliar para Estevam, fato possível numa terra sem lei na época. Estevam ficou durante algum tempo imobilizado, até que um dia um seu cunhado, num ato destemido, montado num cavalo, resgatou-o desta incômoda situação, levando-o de volta a Sto. Estevão. Após aproximadamente seis meses, Regina retorna para Bonfim e sua família estava certa de que o romance tinha sido esquecido. Engano deles. Numa madrugada, montado a cavalo e num arroubo próprio de romance folhetinesco, Estevam rapta a sua amada, conduzindo-a a um esconderijo num sitio de um amigo. Lá permaneceram até que a desenfreada perseguição impetrada por seus irmãos e mal-humorados auxiliares desistissem da empreitada. Após a poeira baixar, os fugitivos casaram-se em Sto. Estevão em 1931 e as dificuldades ainda estavam começando.

No ano seguinte nascia a sua primeira filha, Olga, justamente na época da grande sêca de 1932, talvez a maior e mais dolorosa que o nordeste já conheceu. Milhares de pessoas pereceram de inanição. O campo de trabalho deixou de existir e Estevam, pela segunda e última vez deixou sua terra, desta feita sobrecarregado pelos encargos de família. Regina tinha sido deserdada pelos seus familiares e, posteriormente, através de manobras escusas, ficou destituída dos direitos de herança. Em busca de zonas poupadas pelo rigor da longa estiagem, Estevam foi reger, ainda insistindo em viver da música, a banda filarmônica da cidade de Afonso Pena, hoje Conceição do Almeida, e lá permaneceram até que puderam se transferir para Feira de Santana onde lá se estabeleceram em definitivo.

Estevam Moura, um mulato alto, magro, de finas maneiras, sempre elegante com seus ternos de tropical inglês ou de linho branco, chapéu tipo Panamá, pó-de-arroz no rosto, se tornou figura constante e popular nas ruas e pontos frequentados pela sociedade feirense da época, como o Bar e Café Sueto, na rua Direita, hoje rua Cons. Franco, vizinho ao armazém e casa de ferragens de João Marinho Falcão. Na década de 30 Feira de Santana prosperava com a famosa feira livre que originou o seu nome, a feira de gado e um comércio em ascensão, além do seu melhor período de efervescência social e cultural. Os eventos se sucediam, tais como as festas juninas, a festa de Sra. Sant’Anna padroeira da cidade e, a partir de 1937, a famosa Micareta, criada nesta cidade e posteriormente imitada, ainda na época chamada de Micarème. Os bailes aconteciam principalmente na Sociedade Filarmônica Vitória. Para todas estas efemérides Estevam compunha músicas alusivas e se tornou presença essencial e contumaz. Fundou grêmios recreativos, sociedades carnavalescas, ou melhor, “micaretescas” como As Melindrosas. Nesta época ele já era regente da Sociedade Filarmônica 25 de Março e através desta atividade ele pôde solidificar muitas amizades na cidade, inclusive com outros músicos e compositores locais como maestro Santos, Heráclito de Carvalho, Gerson Simões este último o seu grande e fiel amigo. Não era dado a vícios. Nunca bebeu, nunca fumou, entretanto era conhecido como sedutor e mulherengo.

Por conceituado que era socialmente e no meio musical, Estevam foi convidado a ser professor de música e canto orfeônico no Colégio Santanópolis, do grande educador Áureo Filho, na época a melhor escola da região. Obteve também um emprego na prefeitura da cidade, na Guarda Municipal. Estas três atividades paralelas garantiram a sua sobrevivência, modesta, entretanto sem sobressaltos, até quando a sua frágil saúde lhe permitiu. Era portador de leve gagueira, o que não o impedia de ser afinado quando vez por outra arriscava cantar. Aprendeu a tocar vários instrumentos, sendo bastante hábil no clarinete e saxofone, porém foi na flauta que ele se especializou e sendo este o seu instrumento preferido.

Estevam era um perfeccionista em tudo a que se dedicava, desde as suas composições, no trato com os liderados da banda que ele regia os quais tinham que ser rigorosamente pontuais aos ensaios e cuidadosos nos uniformes de gala para as retretas e desfiles. Neste aspecto sabe-se que ele próprio criava e desenhava estes uniformes que tinham que estar sempre impecáveis. Este mesmo rigor ele impunha aos seus alunos no Colégio Santanópolis os quais estava sempre a conclamar que valorizassem a música, e não admitia que desdenhassem de sua matéria. Hoje estes mesmos alunos se recordam deste mestre com carinho.

Durante muitos anos, e até a sua morte, Estevam Moura trocou correspondência, regularmente, com o respeitado e famoso maestro Heitor Villa-Lobos. Era motivo de orgulho para Estevam o reconhecimento e elogios vindos daquele que foi o mais conhecido e importante compositor erudito brasileiro. Trocavam ideias, aceitava sugestões, assim como durante muito tempo acompanharam mutuamente a evolução de suas carreiras musicais. Por descuido, omissão ou por não se valorizar adequadamente na época o valor histórico desta correspondência, hoje se desconhece, infelizmente, o paradeiro destas cartas.

Numa época de pouco acesso a informações que vinham de fora, Estevam tinha o rádio como aliado. Quase que diariamente sintonizava a Rádio Ministério da Educação, da então capital federal Rio de Janeiro, quando então tinha a oportunidade de ouvir e aprender sobre música erudita, sua grande paixão.

Um fato curioso marcou a carreira de Estevam Moura. Durante os anos quarenta, no período da II Grande Guerra Mundial, havia grande deficiência de metal disponível para a fabricação de instrumentos de sopro. Ilustrativo disto é o fato de que nos Estados Unidos da América, conceituados músicos de jazz, como o saxofonista Charlie Parker, foram obrigados a utilizar instrumentos de plástico. No interior da Bahia, entretanto, não se tinha acesso a estes expedientes, sendo necessário, portanto, o cuidado e manutenção dos instrumentos de que se dispunha. Mas como substituir as palhetas dos saxofones e clarinetes? Estevam com a sua criatividade e capacidade de improvisação, idealizou fabricar, ele mesmo, de forma artesanal, paletas de bambu envernizadas. De tão perfeitas e refinadas, cuidadosamente testadas uma a uma, resultaram numa sonoridade tão preciosa, que foi necessário que ele mantivesse esta atividade atendendo a pedidos que chegavam de todos os lugares do país. Daí surgiu as Palhetas Estevam Moura, vendidas por encomenda e em lojas de instrumentos musicais, cuidadosamente embaladas em pequenos envelopes timbrados. Mesmo após a sua morte as encomendas ainda chegavam.

Embora dominasse os instrumentos de sopro, Estevam não escondia o seu desejo de aprender piano e, foi uma coincidência feliz que lhe proporcionou a realização daquele sonho. Regente da 25 de Março, ele foi residir na antiga rua Direita, em frente à Filarmônica Vitória e exatamente ao lado de sua casa morava a não menos talentosa Georgina Erisman, compositora e pianista, inclusive foi quem compôs o hino de Feira de Santana, da qual tornou-se grande amigo e aluno, chegando a compor em parceria com a mesma, o que lhe proporcionou a oportunidade de ampliar seus conhecimentos musicais e sua cultura geral, embora como autodidata já possuía um vasto cabedal de conhecimentos graças ao seu gosto pela boa leitura. Também da sua biblioteca hoje pouco se sabe do paradeiro.

A primeira composição de Estevam Moura foi o Dobrado Alicio Cerqueira, cujo título demonstra o carinho do maestro para com os seus amigos, comportamento este que jamais se alterou durante toda a sua existência, pois em Feira de Santana ele viria a dedicar outras composições a pessoas da sua amizade, a exemplo das peças: Dobrad Arnold Silva, Dobrado Otaviano Teixeira, Dobrado Irene Silva esta última em homenagem à esposa do seu amigo Joaltino Silva. O dobrado Tuscaera dedicado ao seu filho Ernani que tinha este apelido (Estevam só teve dois filhos, Olga e Ernani). Acredita-se que verdadeiro nome de Tusca tenha sido uma homenagem ao professor e maestro modernista brasileiro, Ernani Braga.

Outras composições famosas do maestro, além das já mencionadas, foram a marcha Constelação, os dobrados Magnata, Presidente João Almeida, Allah, Vida e Morte, além de foxes instrumentais como Reveillon, bastante executado nas festas de ano-novo, Sonho Azul e outras. Compôs ainda o Hino do Congresso Eucarístico e muitas ave-marias.

Estevam viveu muitas alegrias, festejado como artista e respeitado como cidadão. Padeceu, entretanto, durante anos, de uma doença que veio a vitimá-lo. Faleceu muito cedo, aos quarenta e três anos de idade, em maio de 1951, vítima de um tumor no estômago. No leito, sentindo a proximidade da morte, ele compôs o seu último dobrado, O Final.

Texto: Carlos Estevam Moura Dórea

Fonte: pt-br.filarmonicas.wikia.com/wiki/Estevam_Moura